Desde que
me mudei pra Londres, na verdade, desde meados do ano passado, eu passei a ter
um verdadeiro fascínio por pessoas que transitam entre duas carreiras
profissionais ou aquelas que resolveram mudar radicalmente de área. Quem
acompanha o Gato sabe que gosto de coisas que inspiram - e a palavra ‘coisa’ em
si é ótima por poder encaixar um mundo de sentidos dentro dela. E inspiração
pode vir de tantos lugares e de tantas ‘coisas’, certo? Mas o que me fascina
mesmo são aqueles momentos em que a gente se vê inspirado por alguém. Não
precisa ser alguém famoso ou distante (o ícone). Estou falando de pessoas
reais, daquelas que a gente pode sentar junto numa mesa de bar, num café, ou
trocar mensagens virtuais sem lá muitos pudores.
Blogs há
centenas de milhares, a gente sabe bem disso e há blogs de todos os tipos,
fato. Muita gente lê blogs à procura de informação, há quem pouco se importe
com a opinião alheia (mito!). Eu não sou dessas. Eu procuro blogs que possam me
inspirar de alguma forma, no meu vestir-se, no meu olhar sobre uma exposição,
sobre uma obra de arte, sobre um livro, um objeto e por aí vai. Engana-se
demais quem pensa que essas plataformas possam passar mera informação descolada
de opinião pessoal, todo blog é escrito em primeiro pessoa, mesmo quando são
várias escrevendo num mesmo site.
Certo dia,
enquanto divagava sobre pessoas inspiradoras ao meu redor, me dei conta de que
tenho a sorte de conhecer várias figuras encantadoras, bem próximas, bem reais.
Resolvi, então, entrevistá-las (me sentindo a repórter...)! E, não pra minha
surpresa, todas as pessoas com quem comentei sobre o desejo de gravar um
bate-papo e postar no meu blog (leia-se entrevistar, claro) foram super
receptivas e generosas! Sabem aquele ditado ‘amigos, amigos, negócios à parte’?
Não funciona bem assim, viva!!
Esse é o
contexto por trás das entrevistas que aparecerão por aqui vez em quando. Bem
vez em quando, adianto.
Às vezes a
gente fica tão fissurado (Freud) por algumas pessoas, especialmente nesse mundo
de blogueiras e blogs e autopromoção, que acaba esquecendo de olhar a nossa
volta, deixando passar a oportunidade de conhecer mais de perto fontes de
inspiração que podem (e querem) realmente te inspirar com afeto e diálogo de
verdade! Já me frustrei muito com gente que eu julgava inspiradora e que, no
final das contas, só conseguia enxergar o próprio espelho...
Foi assim
que cheguei até Matilda Temperley, fotógrafa inglesa radicada em Londres. Eu a
conheci no jantar de aniversário de uma grande amiga (também extremamente
inspiradora, vocês verão) e logo de cara me encantei com a conversa e com seu
tom de voz. Nascida e criada numa idílica fazenda de cidra em Somerset, no sudoeste
da Inglaterra, Matilda carrega consigo um ar quase bucólico nos traços
delicados do seu rosto e no jeito sereno de contar suas histórias (entre vícios
de linguagem e muitas risadas). Ela aceitou bater um papo comigo sobre como foi
seu processo de mudança da carreira acadêmica em Ciências Biológicas para a
fotografia, sobre suas inspirações nessa arte, seu trabalho com moda, a solidão de quem precisa ficar horas em frente ao computador, sobre sapatos e o difícil trabalho (isso é sério) de ficar trancada por dois meses em
estúdio fotografando as criações de Manolo Blahnik para um novo livro do designer.
Pra deixar
as coisas mais fáceis pra vocês, eu fiz duas versões da entrevista, essa em
português e uma em inglês, idioma da minha conversa com ela (e da minha vida
aqui) e que será publicada em seguida.
Espero que
sintam-se inspiradas!
Em
um pub em Camden
Gabi: Me
conte um pouco sobre em que carreira você estava antes de migrar pra
fotografia...
Matilda: Bom,
eu estudei Ciências [Sciences] provavelmente porque eu era boa nisso, foi algo
que veio com certa naturalidade pra mim. Mas eu sempre quis fazer coisas
criativas, estudar Artes... Quando eu estava na faculdade todo meu trabalho
artístico foi roubado de mim por uma figura bem esquisita (ele roubou todos os
meus trabalhos!) e então eu simplesmente parei de fazer qualquer coisa
relacionada a Artes e me concentrei em Ciências. E minha família, bastante
ligada ao meio acadêmico, sempre me dizia pra fazer algo nessa área, não havia
outro caminho senão fazer algo que fosse acadêmico.
G: Mas você
sempre carregou consigo esse desejo de trabalhar com artes, esse amor pelas
artes?
M: Sim,
bom, quando eu peguei meu primeiro diploma em Ciências eu tive nota máxima,
então quando você tem sucesso em algo você meio que continua naquilo, eu não
sabia bem ao certo o que eu queria fazer, então fui fazer o mestrado em Doenças
Tropicais [Tropical Diseases é uma área bem reconhecida em Ciências Biológicas
por aqui]... Eu acho essa área bem interessante, doenças tropicais é um tema
completamente fascinante e eu amava o processo de aprendizado e o conhecimento
que adquiria, mas o lado prático na verdade envolvia mais questões de
estatística e etc., então não era um trabalho tão divertido quanto outros
trabalhos poderiam ser. Eu era super jovem na época e queria fazer tudo, e sentir
tudo... Mas quando ia pro trabalho de campo eu estava constantemente sozinha na
África com um trabalho que era super específico, era bastante solitário. Bom,
eu tive algumas experiências ruins [num período de duas semanas de trabalho de
campo] e eu sempre tive comigo essa ideia de querer experimentar outras coisas.
Sempre que refletia sobre o que gostaria de fazer da vida eu acabava pensando
naquilo que eu gostaria de fazer quando criança e eu sempre amei fotografia.
Nunca achei que fosse uma carreira propriamente dita [risos] e que pudesse
ganhar dinheiro com isso... E eu sempre quis ser trapezista! Bom, quando eu
estava na África eu tive algumas experiências bem ruins, várias, na verdade, e
eu me perguntei ‘o que eu estou fazendo aqui?’. Então voltei pra Inglaterra, me
demiti do meu emprego em Uganda, estava com pressa... Mesmo lá eu sempre
carregava minha câmera comigo no trabalho, porque pensava poder contar uma
história mais rápido com a câmera do que com meu trabalho acadêmico, o que não
é de fato verdade, mas naquela época eu sentia que era assim, porque você tira
algumas fotos e mostra pra alguém e tudo parece mais compreensível, em Ciências
talvez você leve um ano fazendo a mesma coisa...
Então, sim,
eu acreditava que com a câmera eu poderia contar uma historia mais rápido,
definitivamente não é verdade, mas eu achava que era. Então eu resolvi
fotografar coisas, doenças tropicais, seria mais ou menos a mesma coisa, mas eu
estaria contando a história nos meus termos e mais rapidamente.
G: E o lado
prático da mudança, como foi?
M: Eu me
mudei de volta pra Londres pensando ‘ok, vou ser uma fotografa’, mas eu era uma
cientista e era algo que eu carreguei comigo por alguns anos. Então eu resolvi
acompanhar alguns fotógrafos [como um estagiário de laboratório faria] achando
que era muito fácil, pensando que fotografia fosse algo que eu pudesse aprender
muito facilmente. Eu tive a sorte de conseguir um auxílio do Arts Council
[conselho nacional de artes do Reino Unido] no início pra fazer uma grande
exposição sobre o circo, na época eu estava treinando o trapézio! Então comecei
a ser contratada por pessoas e ao invés de dizer ‘não’ eu dizia que ‘sim, eu
posso fazer isso’, o que me ajudou com a prática, pedi ajuda a alguns
profissionais e emprestei um espaço pra usar como estúdio, então eu estava
literalmente praticando. Eu me perguntava ‘em quem eu estou interessada’? E eu
sempre pensava em dançarinos. Eu amo dança, amo dançarinos, então [eu os
convidava] e eles vinham e dançavam no estúdio enquanto eu os fotografava. Eu basicamente
fotografava coisas que eu amava até que, eventualmente, as pessoas começaram a
me pagar pra fotografar coisas que eu amava [risos]. Eu pegava outros trabalhos
que apareciam também, mas hoje eu posso ser mais seletiva. Demorou alguns anos
ser como é hoje, eu era tão impaciente naquela época, eu não queria parar,
então eu já estava inserida numa carreira propriamente dita. Provavelmente eu
teria aprendido mais se tivesse observado outros profissionais por mais um ano,
mas eu era muito impaciente.
G: Ah, a
impaciência. Eu estou na academia há 7 anos e nunca trabalhei em outra área e,
hoje, quando me vejo experimentando outras coisas eu quero resultados rápidos e
tenho a sensação de que tenho passado a maior parte do meu tempo dentro de
bibliotecas e salas de leitura do que experimentando o mundo na prática
[exageros à parte]. Você sentia esse tipo de ansiedade quando resolveu mudar de
área?
M: Ah eu
tinha muita ansiedade e essa mudança foi o momento de maior pressão que eu
jamais havia sentido, desistir de um emprego no qual havia trabalhado a vida
toda pra fazer algo totalmente instável... Quando você passa tanto tempo na
academia e decide tentar algo diferente você sente uma certa pressão pela
idade, eu acho, então quando você decide mudar de área você espera estar, não
sei, 8 anos adiantada do tempo em que você realmente está. É bem difícil no
começo, eu era bem ingênua e achava que tudo aconteceria super rápido apenas se
trabalhasse bastante.
G: Há
quanto tempo você migrou de vez, então?
M: Em 2007.
Na verdade, em retrospectiva, não passei tanto tempo assim em Ciências. Eu fiz
a graduação na área e o mestrado e já fui direto pro meu emprego na África, eu
fui um tanto mimada nesse sentido, consegui emprego logo depois do mestrado,
não precisei subir os degraus, entende?
G: Entendo.
Bom, nas suas fotografias eu vejo o corpo humano bastante em evidência, em
todas as formas, tipos, estranhezas, belezas, etc.
M: Sim, eu
amo o circo e ao mesmo tempo em que me tornava fotógrafa eu estava praticando o
trapézio, eu quebrei vários ossos e várias partes do meu corpo, estava
definitivamente muito velha pra começar o trapézio! [risos] Mas eu sempre tive
vários amigos no circo, eu amo a fisicalidade disso, acho que [as imagens do
corpo] vem daí. Gosto de pessoas extraordinárias, de entender porquê elas fazem
o que fazem, vivem como vivem, de onde elas vem. É extraordinário ver as
modificações que as pessoas fazem no seu corpo... O comprometimento que as
pessoas tem aqui em Londres de mudar seus corpos completamente... Uma das
meninas que fotografei tatuou de preto seu globo ocular, (...) ela mudou tudo
em seu corpo... Entender a psicologia por trás disso é o que faz fotografia tão
interessante, porque as pessoas são como são... Como fotógrafa eu estou
interessada em pessoas únicas.
G: E qual a
sua relação com padrões de beleza? Digo esses parâmetros normativos, ocidentais
aos quais estamos expostos.
M: Bom, eu
adoraria ser uma fotógrafa documentarista, foi por isso que entrei pra essa
área, mas eu me dei conta de que nunca poderia ser uma, porque eu não quero
capturar as coisas como elas são, mas, sim, procurar a beleza nas coisas [clique aqui pra ver alguns dos seus retratos], o que
é relativamente diferente. Eu quero fotografar alguém em seu melhor... Uma das
coisas mais importantes pra mim quando fotografo alguém é que a pessoa se sinta
feliz com aquela imagem, porque é como se estivesse pegando um pedacinho dela,
sinto uma responsabilidade nisso... Então acho que não tenho um padrão de
beleza estipulado que eu consiga reconhecer, não tenho uma visão convencional
de beleza.
G: E como
as pessoas respondem às suas fotografias?
M: Elas
respondem super bem! Mas eu só fotografo alguém se consigo me conectar a essa
pessoa. Quando alguém chega no estúdio você tem cerca de 10 minutos pra
encontrar um ponto em comum com a pessoa, na verdade pra eu e a pessoa nos
avaliarmos, nos conhecermos, porque [retrato] é um tipo de fotografia bem
intenso... Nesse sentido, você pode perguntar qualquer coisa a pessoa quando
ela vem pra posar pra você, em ensaio de moda não é assim, isso só acontece nas
minhas sessões de retratos, os trabalhos de moda são completamente diferente.
Nos retratos as pessoas estão super abertas, elas te deixam, como fotógrafo,
ser tipo um voyeur.
G: Falando
nisso, eu sei que você também faz fotografias de moda e tem editoriais em várias
revistas [clique aqui pra ver alguns deles]. Qual a sua relação com a moda?
Matilda:
Minha irmã é uma designer de moda [Alice Temperley, da Temperley London, que
veste a Kate Middleton, por exemplo] então eu sempre estive próxima da área. Se
tenho interesse nisso? Não muito. Eu aprecio a beleza e posso apreciar roupas
de um modo geral, mas se isso me inspira ou se fico empolgada com essas coisas?
Não mesmo. A não ser que esteja fazendo um trabalho e daí, sim, eu me divirto,
eu me inspiro e me conecto. Mas eu sempre estou mal arrumada, não poderia ligar
muito pra moda nessa sentido. Eu não sou alguém que é inspirada por moda. Mas
se você me der uma modelo e algumas roupas eu ficarei inspirada a conseguir as
melhores imagens com aquilo, as mais interessantes.
G: E a sensibilidade
pra se fazer esse tipo de fotografia é completamente diferente, imagino...
M: A
diferença é que pra um retrato você quer se aproximar da psique da pessoa,
nossa isso soou muito pretencioso, mas você quer ver quem a pessoa é e seu
corpo, mas quando você está usando uma modelo você não quer ver quem ela é,
você quer usá-la como uma tela em branco pra fazer com quem ela seja quem você
quer que ela seja, você quer que ela represente outra coisa.
G: A sua
relação com as pessoas que você
fotografou, o projeto sobre o circo, os retratos, afetou ou afeta de alguma
forma a sua relação com seu próprio corpo?
M: Eu
gostaria de dizer que ‘sim, me inspirou a ficar super em forma’ e eu constantemente
me sinto inspirada a entrar em forma, mas eu sou muito boa em quebrar ossos!
[ela já quebrou um joelho, os pulsos, costelas e passou por algumas cirurgias
por conta disso] Mas eu adoraria voltar para as árvores [onde praticava o
trapézio], gostaria de poder dançar... Eu me tornei mais consciente com relação
a cuidar do meu corpo e por isso, acho, me sinto inspirada a observar pessoas
que tem uma fisicalidade incrível.
G: Eu
imagino que você deva estar sempre rodeada de pessoas, por conta do trabalho,
não? Meu maior problema com meu doutorado é que acabo ficando muito tempo
sozinha, porque é preciso, você precisa sentar e pensar e ler e escrever...
M: Mas,
sabe, meu trabalho não é tão sociável quanto se imagina. Eu não fotografo todos
os dias, então passo muito tempo sozinha no escritório, acho que as pessoas
subestimam quanto tempo se passa fazendo edição de imagens e essas coisas,
então você acaba passando muito tempo no computador.
G: Eu sinto
uma enorme dificuldade em socializar na universidade, porque, na minha área,
por exemplo, não temos laboratório ou pesquisa de campo e a própria política
universitária [doutorandos não cursam disciplinas] faz com que a gente se isole
demais e então quando você tenta socializar com colegas percebe que eles não
sabem ou não se interessam em dividir...
M: Sim! E
essa foi uma das razões pelas quais eu decidi abandonar a academia. Porque eu
imaginava que [com fotografia] seria mais social e teria resultados mais
rápidos, em alguns aspectos isso é verdade, mas em outros não. Como fotógrafa
sou meu próprio chefe, faço o que quero na hora que quero, trabalho por mais
tempo por ser freelancer, mas ganho duas vezes mais do que ganhava como
cientista... Mas não sou tão sociável, sabe. Como eu disse, meu trabalho
envolve muito mais o computador do que parece, então, não sei, talvez a grama
seja mesmo sempre mais verde do outro lado... Mas, sim, uma das razões pelas
quais deixei as Ciências era o trabalho muito solitário.
G: Entendo
bem. Por essa razão quis criar o blog, porque apesar de ainda estar no
computador eu posso realmente falar com as pessoas sobre coisas que elas possam
entender e se conectar. E assim elas podem se conectar comigo também.
M: Sim!
Sabe, é assim com fotografia também, apesar de eu estar trabalhando sozinha, as
pessoas podem realmente ter reações com relação aquilo. E com o que você faz
como doutoranda e o que eu fazia como cientista há apenas um número pequeno de
pessoas com quem se pode realmente ter uma conversa, por ser tão específico.
De volta ao escritório
G: [Pedi se
poderia fazer algumas fotos dela] Eu adoro fotografia em preto e branco, acho
que tem uma estética super trabalhada. Você acha que uma boa imagem depende
mais do equipamento - locação, iluminação, modelo, paisagem – ou no fotógrafo?
M: Uma imagem
excepcional depende do fotógrafo, mas uma imagem boa depende mais da câmera, eu
acho. [risos] Na verdade acho que seja meio a meio. Eu acabo de pegar um
trabalho novo que está me deixando meio apavorada, eu vou fotografar o novo
livro do Manolo Blahnik. Eles acabaram de me entregar uma quantidade enorme de
sapatos. Estou um pouco aterrorizada! [risos]
G: Porque?
M: Porque
terei que ficar fechada no estúdio fotografando sapatos!
G: Mas você
gosta de sapatos?
M: Não
muito. Na verdade, bem, eu gosto de sapatos, amo a estrutura deles, mas eu
tenho dois pares de sapatos e ambos estão no meu escritório. Então eu não sou
lá uma connaisseur de sapatos, eu os aprecio, mas só consigo usar sapatos sem
salto pra ser sincera... [risos]
No comments:
Post a Comment